13 novembro 2006

E assim conheci o Mestre Salustiano...

Na minha recente viagem a Olinda tive o enorme privilégio de conhecer pessoalmente o Mestre Salustiano, lenda viva da cultura popular pernambucana. Nascido em 1945, no município da Aliança, aprendeu ainda menino a brincar o maracatu. Recebeu de seu pai a arte de tocar e construir rabecas.

O título de mestre não veio por acaso. Foi um dos maiores dançadores de cavalo-marinho da região, interpretando diversos personagens: arrelequim, dama, galante, contador de toada, Mateus (durante nove anos), recebendo por isso o título de mestre.

Fundou o Maracatu Piaba de Ouro, em 1997, e com esse grupo participou do festival de Cultura Caribeña, em Cuba. É o comandante do cavalo-marinho Boi Matuto, que criou em 1968, e do Mamulengo Alegre.

Influenciou a vida de muita gente como o Siba (leia-se Mestre Ambrósio), Antônio Nóbrega e Chico Science (Nação Zumbi). É tido como a principal influência do movimento Mangue Beat.

Foi agraciado com o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal de Pernambuco, em 1965, e já percorreu com a sua arte a maioria dos estados brasileiros e países como a Bolívia, Cuba, França e Estados Unidos.

Em 1990, recebeu o título de “reconhecido saber” concedido pelo Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco e o de comendador da Ordem do Mérito Cultural, em 2001, pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.

Indicado pela Prefeitura de Olinda, foi escolhido pelo Governo do Estado, através da Lei nº 12.196 de 2 de maio de 2002, como Patrimônio Vivo de Pernanbuco.

Apesar de todo esse histórico Mestre Salu, como é conhecido carinhosamente, é simples e cortês. Quando cheguei em sua casa, às 22h de uma sexta-feira, lá estava ele, assentado numa calçada, olhando para o tempo, sozinho. Nos recebeu muito bem e assim que eu saquei a rabeca que ele mesmo tinha feito, e que eu havia adquirido naquela tarde através de sua esposa, já começou a tocar, extraindo sons incríveis.

Não perdi oportunidade e pedi: “Mestre Salu, você pode me ensinar como se toca?”. Foi uma aula rápida, mas inesquecível. No outro dia ele completou 61 anos de idade com uma festança toda preparada na sua Casa da Rabeca. Fui gentilmente convidado, mas eu tinha que voltar para Brasília. Só mais tarde fiquei sabendo que ele tem freqüentado uma Assembléia de Deus, só não sei se assiduamente.

Mas o compromisso já foi marcado. Numa próxima ida a Olinda vamos tocar juntos rabeca e viola caipira. Agradeço a Deus por pessoas como Mestre Salustiano que fazem da vida algo mais belo.

Uma igreja sem portas e janelas

Foto tirada por Carlinhos Veiga em novembro de 2006



Numa das minhas andanças por essas terras fui convidado a participar de um Fórum Popular de Teologia na cidade de Olinda, Pernambuco, em novembro de 2006. Várias entidades apoiavam essa iniciativa da Igreja Batista de Bultrins, que tinha por tema “Igreja, Comunidade e Violência”. O assunto era muito pertinente para uma igreja plantada em meio a uma região de muita pobreza e consequentemente de enormes conflitos sociais.


Chegando ao local percebi que não era uma atividade meramente preparada pela igreja para a igreja. Era um evento que envolvia toda a comunidade ao redor. Estavam ali representadas várias sociedades civis e movimentos populares. Uma quermesse se estendia rua afora, defronte ao templo, como um tapete vermelho de boas vindas aos participantes que vinham de todo o Recife e de vários estados do país.


Fui andando no meio daquele povo sorridente e carinhoso buscando alcançar o local das reuniões quando me deparei frente a frente com o templo: um prédio simples, rude, inacabado, sem portas e janelas. Isso mesmo: não havia portas nem janelas, apenas vãos abertos, orifícios vazios, vazados, como o sorriso banguela de muitos daqueles transeuntes. Pensei comigo: como isto é possível? Uma igreja aberta 24 horas, que não fecha suas portas porque não tem portas para fechar, que não tranca suas janelas porque não tem janelas. Uma igreja sem cadeados e chaves, sem trancas e tramelas. Quis saber um pouco mais sobre aquilo.


Paulo César era um jovem que na década de 90 sonhou, juntamente com alguns companheiros e irmãos de fé, em levar o evangelho de Cristo ao povo humilde e sofrido da Vila Esperança, periferia de Olinda. Inicialmente faziam apenas reuniões evangelísticas, mas aos poucos outras necessidades surgiram. O povo precisava de tudo. Muitos estavam famintos, outros tantos doentes, outros vivendo pesados dilemas e dramas psicológicos. Era preciso fazer algo mais do que estudos bíblicos e pregações. Apesar das limitações, Paulo e seus companheiros seguiram os passos de Jesus e se envolveram, movidos por compaixão, com os moradores da vila Esperança.


Com os anos uma igreja Batista se formou ali. Adquiriram um terreno com o apoio da população local e começaram a construir o templo. Lançaram a fundação, levantaram as paredes e colocaram o telhado. Faltavam apenas as portas e janelas. Passaram a se reunir ali mesmo com a construção não concluída. Foi quando aconteceu algo que mudou radicalmente os rumos da Igreja Batista de Bultrins. Incomodados com a desafiadora mensagem do evangelho, seis irmãos se apresentaram à liderança como candidatos ao ministério – queriam estudar teologia. Mas a igreja não dispunha de recursos para este envio. Foi aí que tiveram de tomar a difícil decisão: ou enviavam os seis para o seminário ou colocavam as portas e janelas no prédio. A Assembléia optou pelo mais sensato, embora muitas vezes não seja entendido pela maioria de nós como o mais lógico: enviaram os vocacionados. Com esta atitude, sem perceberem, estavam delineando, esculpindo a visão ministerial daquela igreja. Ao privilegiarem pessoas ao invés de coisas definiam uma cultura que caracterizaria a comunidade.


Anos se passaram e as portas e janelas nunca foram colocadas. Um novo conceito de igreja, e não só de templo, foi definido ali. Terminaram as instalações hidráulicas e elétricas, compraram cadeiras, instrumentos de som, mas nada de portas e janelas. Uma relação diferenciada foi estabelecida entre a igreja e os moradores da região. Com as portas abertas 24 horas, moradores de rua passaram a dormir no templo. Famílias de sem-teto agora tinham um canto para se abrigar do frio e das chuvas. Passaram a servir o sopão aos mais carentes nas noites de segunda-feira. Os garis que cuidavam da limpeza da região agora tinham uma sombra boa para o almoço e a rápida sesta. E assim a comunidade ao redor se abriu para a igreja porque a igreja se abriu, ou melhor, não se fechou, para a comunidade.


Tive o privilégio de subir o morro da Vila Esperança com o Pastor Paulo César, de serpentear por entre aqueles becos que revelam tanta miséria, pobreza e violência. Por onde passávamos o povo o saudava com sorrisos e abraços. As crianças corriam na sua direção quando o viam e gritavam carinhosamente “irmão Paulo, irmão Paulo!”. Dizem até que num determinado período muito conturbado e violento ali o único que tinha carta branca para entrar e sair a qualquer hora do dia e da noite da Vila Esperança era o irmão Paulo. Tudo por causa de uma igreja que decidiu não ter portas nem janelas. Que optou por não fechar-se em si mesma, mas abrir-se para aqueles que estão ao redor.


Não pretendo ser simplista, muito menos romântico. A Igreja Batista de Bultrins paga um preço por essa atitude, e não é barato. Vez por outra precisa administrar conflitos internos e externos por não ter portas nem janelas. Mas sua atitude marcou a vida de toda uma comunidade que agora compreende verdadeiramente as palavras de Jesus: O que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora (João 6.37).